domingo, novembro 18, 2007

Fragmentos (de uma vida banal)

Um dia nas férias. Um dia qualquer da semana passada.
Acordei às onze horas da manhã, com sono, para almoçar, tomar banho e ir para a auto-escola. Resolvi aprender a dirigir. Quem já viu um homem que não sabe dirigir? Vou, então, tentar tirar a Carteira Nacional de Habilitação.
Saí de casa para apanhar o ônibus rumo à auto-escola. Esperei uns cinco minutos e o ônibus chegou. Passei pela catraca e sentei-me ao lado de uma senhora bêbada e mal-cheirosa. Pense como isso me irritou. Aliás, irrito-me com simples eventos, como quando tenho que sair de casa e começa a chover, por exemplo. Isso é tão banal que não deveria provocar irritação em ninguém. Depois dessa tergiversação, volto ao relato.
Em quarenta minutos estava na auto-escola. Mas, antes, passei pelo paraíso do consumo que "atende" pelo nome de shopping-center. Não perdi a oportunidade de fazer algumas infames piadinhas a respeito da classe média consumista ao meu irmão, que me acompanhava e que também está tentando se tornar um motorista de carro de passeio. Ele rira bastante, mas as piadas eram bem ruins. Acho que nem precisava de piada. Ver a classe média se empanturrando em compras e sair do shopping e dar de cara com uma favela, a menos de 30 metros, com crianças andando nuas e descalças é, no mínimo, humor negro. Uma piada de péssimo gosto. Mas deixa para lá. Acabei hesitando novamente.
Disse que em quarenta minutos estava na auto-escola. A auto-escola fica bem perto do shopping e da favela mencionada. Fica no primeiro andar de uma sala comercial. É um imóvel minúsculo com péssimas instalações. O atendimento é pior ainda. Quem me atendeu pela primeira vez, foi uma mulher que aparentava ter entre 18 e 21 anos. Pense numa moça insolente, mal-educada. Quase perco o que me resta de compostura com ela. Mas me contive. Afinal, sou bom moço e tinha três horas intermináveis de aula pela frente. Não podia me irritar e arriscar ter uma dor de cabeça. Ainda mais naquele calor, acentuado pelas pequenas dimensões do imóvel. Para me refrescar um pouco, fui tentar tomar um copo de água. Mas quem disse que tinha água? Outra banal irritação. Começou a aula. Na sala tinha gente de todo tipo. Gente nova, gente velha, magros (como eu), gordos, mães recentes, desempregados, enfim, um verdadeiro mosaico de tipos. Como em quase todo lugar. Chega o instrutor.
Tipo engraçado o tal instrutor. Era meio surdo e não enxergava muito bem. Falava pausadamente, o que me irritava às vezes - mais uma irritação banal. O senhor, a que muitos se referiam como "professor", não tinha a menor didática. As aulas eram irritantemente monótonas. Disse umas quarenta infrações cometidas no trânsito e respectivas penalidades. Deu nem tempo de refazer a sinapse nervosa. Estava prestando tanta atenção no que ele estava dizendo que acabei cochilando uns cinco minutos. Chega a hora do intervalo.
Vinte minutos. Não tinha intimidade com nenhum dos meus pares. Uma semana só de aula, para quê conhecer mais gente? Fiquei trocando idéias com meu irmão. Falamos de tudo: moda, pintura, cinema. Cada assunto era discutido à toque de caixa. Já pensou falar do expressionismo em um minuto? Ou do neo-realismo italiano em dois minutos? Dá para perceber o quanto foram proveitosas nossas conversas. Acabou o intervalo. Os vinte minutos se transformaram em trinta e cinco. Voltamos à aula.
Eu só conseguia prestar atenção no relógio, rezando para que chegasse logo às cinco horas da tarde. Mas o instrutor quebrou meu galho. Nos liberou vinte minutos antes. Nem ele estava agüentando aquele misto de marasmo e calor infernal. Dirijo-me à parada de ônibus, a fim de retornar para casa. Afinal, estou de férias e sem dinheiro. O melhor lugar para estar é em casa. Chega o ônibus. Ainda bem que tem lugar para sentar. Pago a passagem e sento-me. Chego em casa. Tomo banho e como alguma besteira. Mas o dia estava longe de terminar...
Dando uma passada nos canais de televisão, vi que ia passar "Morte em Veneza", de Luchino Visconti. Já tinha ouvido falar muito desse filme e do livro do Thomas Mann. Marquei para não esquecer. Até lá, li algumas páginas de "A Paixão Segundo G. H.", da Clarice Lispector. Ainda estou na metade do livro. Não consigo avançar muito. O sufoco da protagonista é o meu. Pense como fico angustiado lendo esse livro. As palavras não dão conta do que G. H. sente.
Depois, passei a assistir a sessão da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal que ia decidir se aprovaria ou não a prorrogação da CPMF. Aliás, não se fala em outro assunto. O Brasil se resumiu à CPMF. R$ 40 bilhões. O governo não queria perder. Como eu não queria perder minha paciência ouvindo um tal de Wellington Salgado, suplente de senador, desliguei a televisão. Fui para o computador.
Não sei porque toda vez que entro na internet, vou logo para a página da Folha de S. Paulo. Um jornal conservador, devoto do neoliberalismo, como quase toda a mídia brasileira. Mas sei filtrar o que é informação e o que é opinião. E como vêm misturados esses dois elementos, viu? Li algumas notícias. Percebi que faltavam dez minutos para começar o filme. Chegou a hora do filme.
Chamei meu irmão para assistir. Ele não quis, mas depois entrou no quarto e pegou o filme pela metade. Que obra-prima do Visconti. Ainda não tinha assistido. O filme conta a história de um músico que encontra a beleza personificada em um adolescente. Depois do encontro com o garoto, todas as discussões a respeito da beleza, se eram objeto da criação humana ou divina, caíram por terra. O músico apaixona-se perdidamente pelo adolescente e, a partir daí, começa a luta dele com ele mesmo, com seus valores e devaneios. Tudo isso, sendo acompanhado pela quinta sinfonia de Gustav Mahler. Fazia tempo que não via um filme tão belo. E a cena final, então? É sublime. Em certa parte do filme, é mostrada uma Veneza decadente, com seus mendigos e a peste asiática. O oposto da beleza. Tal qual, a relação "antônima" entre o shopping center e a favela, sendo que aqui esses extremos são produtos de um mesmo vetor. Pára, pára.
Fiquei com a imagem final do filme na minha cabeça, junto com o adagietto da quinta sinfonia do Mahler. Fui dormir. Ganhei meu dia.

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